domingo, fevereiro 27, 2005

 

Eutanásia (1º)

Atenção: texto muito longo, recomenda-se uma caixita de Aspirinas à mão de semear.
Falar da eutanásia não é falar da morte, é falar da vida.
O problema centra-se exactamente naquilo que cada um considera como vida.
É que, conceito de vida, enquanto noção objectiva e universal, apenas existe no plano científico. Ora não é neste plano que se discute o problema: é no plano subjectivo e cultural.
É em questões como a eutanásia, o aborto, o divórcio ou as intervenções na vida humana, que mais se acentua a clivagem entre esquerda e direita.
Esta distinção entre esquerda e direita tem pouco significado para muitos dos que já encontraram a democracia feita e, felizes, não tiveram de saborear o ambiente de sacristia da direita anterior a 1974.
No entanto, as posições que se assumem perante as questões que referi são essencialmente políticas e fortemente condicionadas pelo nosso posicionamento político, que não apenas partidário.
Antes de 74, não só não eram discutidos estes problemas como a posição do Estado Português se perfilava pela posição “progressista” da Igreja: era indubitavelmente uma atitude de direita.
Nos tempos que correm, apesar de o Estado se assumir constitucionalmente como laico, continuamos a manter o alinhamento pela doutrina da Igreja.
A este facto não será alheia a tendência que os principais partidos têm demonstrado para conquistarem o centro do eleitorado. Como consequência, o próprio Ps tem sempre umas posições tímidas, envergonhadas mesmo, no que respeita a estas questões. Veja-se a posição que então Guterres tomou face ao referendo ou o evitamento destas questões por Sócrates nesta campanha, enquanto Santana tentava obrigá-lo ao debate, bem sabendo que uma atitude coerente iria retirar votos ao Ps.
Talvez por isso, porque não são só os nossos industriais que têm falta de tomates, a questão da eutanásia já está a ser discutida em Espanha, com a possibilidade de qualquer um poder emitir uma declaração que autoriza a eutanásia caso exista justificação, enquanto nós continuamos a olhar para o lado. E não me venham dizer que somos mais crentes do que os nossos vizinhos.
A questão, para mim, passa pela ideia de vida. E só concebo viver através da interacção com o mundo que me rodeia: pensando e sentindo, mas transformando ambos em acções.
Não consigo aceitar que se considere vivo alguém que limita a sua existência ao pulsar, muitas vezes assistido, do coração. Ao acto de respirar. Ao facto de conseguir processar algum alimento sintético que lhe vão fornecendo.
Se não consegue comunicar, se não manifesta qualquer interacção com os outros, então está tão vivo como as árvores que tenho à minha frente.
Não aceito que quem define vida na minha sociedade sejam indivíduos que optaram por prescindir de um amor concreto, de afectos práticos, em troca de um amor por algo imaterial, de uma dedicação absoluta ao espiritual.
Sou capaz de andar à pancada para lhes garantir o direito a serem como são, mas não lhes reconheço o direito de me imporem a sua visão do mundo e da própria vida.
Termina aqui a primeira parte do texto. Fica ainda por tratar a questão da eutanásia perante pessoas que passam décadas de sofrimento irreversível e que, estando conscientes, pedem para lhes por termo à vida.
Fica para o próximo texto.

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